A dublagem venceu as legendas

Com a procura cada vez maior por versões com voz em português, filmes e séries
legendados (uma tradição brasileira) estão ameaçados de desaparecer

TONIA MACHADO E DANILO VENTICINQUE


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A VOZ DO POVO
A dubladora Zodja Pereira numa gravação em São Paulo. A maioria dos brasileiros prefere a voz dos dubladores ao
áudio original (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)



Durante muito tempo, assistir a um filme estrangeiro no cinema significava se preparar para uma longa sessão de leitura. À exceção dos desenhos animados e de algumas produções infantis, os filmes dublados só encontravam espaço na televisão aberta. Nos últimos anos, a tradição começou a mudar. Para conquistar um público maior, os cinemas têm apostado nas versões dubladas. Dependendo do filme, encontrar uma sessão legendada pode ser difícil.

A estreia de
Os vingadores, o principal lançamento do ano até agora, mostra essa mudança em números. Das 1.152 cópias do filme lançadas no Brasil, 673 eram dubladas. O filme superou os R$ 110 milhões de faturamento, a maior bilheteria da história dos cinemas brasileiros. A superprodução adolescente Crepúsculo: amanhecer – parte 1, lançada no ano passado, também seguiu a estratégia. Quase dois terços das cópias lançadas eram dubladas, e elas faturaram mais que as versões legendadas.

O triunfo da voz sobre a palavra escrita reflete uma nova demanda dos espectadores. Segundo o Instituto Datafolha, 56% dos frequentadores de cinema preferem filmes dublados. A ascensão de uma nova classe média, que passou a frequentar os cinemas recentemente, explica a mudança do gosto. “Essas pessoas estavam acostumadas a filmes dublados na televisão aberta e querem o mesmo nos cinemas”, afirma Cesar Silva, diretor-geral da distribuidora Paramount no Brasil.

Um filme como
Os vingadores, que tem muita violência e pouca conversa, contém 50 mil caracteres de legenda, equivalentes a 30 páginas de livro. Em duas horas, é muita leitura para quem não está acostumado.

Os canais de televisão por assinatura também adaptaram sua programação. Personagens de séries antes legendadas, como o drama
Grey’s anatomy, aprenderam a falar português. Os filmes também passaram a ser dublados. A rede Telecine adotou o áudio em português como primeira opção em quatro de seus canais. Caso o assinante prefira a versão legendada, deve fazer a escolha com o controle remoto. Assim como no cinema, a mudança tem a ver com o crescimento do público. “Há quatro anos, a televisão por assinatura tinha 4 milhões de assinantes. Hoje tem 13 milhões”, diz Manoel Rangel, diretor-presidente da Agência Nacional de Cinema. “Deixou de ser um serviço para poucos.”

Embora as mudanças possam causar estranhamento em parte do público, o sucesso dos filmes dublados é comum no mundo todo. Em países como Alemanha e Itália, é difícil encontrar uma sessão legendada nos cinemas. Na Espanha, a preferência por dublados é fruto de uma decisão política. Em 1941, sob a justificativa de defesa do idioma, o ditador Francisco Franco promulgou uma lei que obrigava a dublagem de todos os filmes estrangeiros. A obrigatoriedade desapareceu em 1946, mas o hábito não.

Por vontade própria ou por decreto, abrir mão das legendas pode até ser uma experiência prazerosa. Ao optar por ouvir, o espectador volta sua atenção para detalhes do filme, como o cenário, as expressões faciais ou o figurino dos personagens. A tradição brasileira de dublagem ajuda. Ao contrário dos dubladores de países hispânicos, que enchem de drama latino a interpretação de seus personagens, os brasileiros tentam reproduzir o tom dos atores originais. “Procuramos interpretar com naturalidade”, afirma Zodja Pereira, fundadora de um estúdio de dublagem em São Paulo. Novas tecnologias também contribuem. Nos primórdios da dublagem, era necessário regravar todo o áudio do filme para inserir as falas traduzidas. O som ambiente do filme era perdido. Hoje, os filmes chegam aos estúdios com faixas de som separadas. A dublagem substitui a faixa da voz, e o som ambiente permanece o mesmo.

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RUMO À LUTA

Acima, o filme Os vingadores, sucesso na versão dublada. (Foto: divulgação )


Apesar da melhoria nas dublagens, o declínio das legendas traz prejuízo aos espectadores. Por melhor que seja, o dublador não consegue interpretar o personagem. Como substituir a voz de um ator complexo como Sean Penn ou Meryl Streep? Perde-se mais ainda quando o dublador não é profissional. Com o objetivo de atrair mais público, tem se tornado cada vez mais comum ouvir artistas famosos pouco habituados à dublagem dando voz a personagens de filmes infantis. Ouvir o mesmo dublador falando por vários atores também causa estranheza. Na versão dublada de
O informante, o espectador que prestar atenção às falas do personagem de Al Pacino reconhecerá a voz que dublou Richard Gere por anos, inclusive em Uma linda mulher. Na vida real, a voz dos dois atores não tem nenhuma semelhança.


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Os espectadores descontentes com os
lançamentos de séries e filmes dublados
começam a formar movimentos de resistência.
A campanha
Dublado sem opção, não,
lançada nas redes sociais, já reúne 6 mil
pessoas. “Não é justo que os canais
imponham uma programação dublada”, diz o
advogado Bruno Carvalho, organizador do
movimento. O objetivo é convencer os canais a
permitir que o assinante possa escolher
sempre entre a versão dublada e a legendada.




O advogado Bruno Carvalho, que lidera um grupo em
defesa das legendas. A ascensão da dublagem agrada
à maioria, mas incomoda parte do público (Foto:
Emmanuel Pinheiro/Nitro)



Nos cinemas, onde não existe a opção de mudar o áudio com o controle remoto, o futuro das legendas é mais sombrio. Se os dublados são preferidos pelo público, é natural que o mercado se adapte à demanda da maioria. Assim como na Europa e nos Estados Unidos, os filmes legendados tendem a se tornar um produto de nicho, exibido longe dos shopping centers. Cinemas como o Reserva Cultural, em São Paulo, podem se tornar o último reduto para quem quiser ouvir a voz verdadeira dos atores. “O cinema é uma arte repleta de sutilezas que precisam ser respeitadas, e a manutenção do áudio original é uma forma de respeito”, afirma Laure-Bacqué, sócia diretora do cinema. Lá, filmes dublados só entram se forem infantis. Salas como essa podem ser o último foco de resistência para impedir que as legendas se tornem curiosidade histórica, como o cinema mudo ou os filmes em preto e branco.


ÉPOCA
. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/cultur...-legendas.html>. Acesso em: 14 jun. 2012.